18/01/2023

Melancolia e suicídio: uma articulação freudiana - Marcos Vinicius Brunhari/Vinicius Anciães Darriba*

Dentre as primeiras referências de Freud ao suicídio, em "Sobre a psicopatologia da vida cotidiana" (1901/1969), ele reserva um capítulo para descrever os "equívocos na ação [Vergreifen]" (Freud, 1901/1969, p. 167). Segundo o autor, basta um passo, a partir dos lapsos na fala, para que se considerem os equívocos da ação como formados da mesma maneira que os lapsos. Essa formação compartilhada se observa desde o efeito falho, um desvio do que era intencionado, como característica fundamental. Dentro dessa categoria de equívocos na ação, Freud enumera situações em que atos apontam para determinações inconscientes escamoteadas sob equívocos e erros. São pequenos acidentes ou o uso inadequado de objetos e, também, quedas, escorregões, passos em falso e ferimentos autoinfligidos. Quanto aos ferimentos autoinfligidos, Freud afirma que "nunca se pode excluir o suicídio como um possível desfecho do conflito psíquico" (1901/1969, p. 181). A proposta de Freud é de dispor as tentativas ou conclusões de suicídio como reveladoras de uma intenção inconsciente que pode estar mascarada por um acidente casual. Dessa forma, ele argumenta que uma tendência à autodestruição está presente em certa medida e que "os ferimentos autoinfligidos são, em geral, um compromisso entre essa pulsão e as forças que ainda se opõem a ela" (Freud, 1901/1969, p. 183). Freud indica a presença de uma pulsão que impele à autodestruição, o que pode ser reconhecido como um germe da pulsão de morte, na base das tentativas ou conclusões suicidas de ordem consciente ou inconsciente. Segundo o autor, duas forças se opõem e os ferimentos autoinfligidos surgem a partir da tendência à autodestruição que supera as forças que se lhe opõem. Esse prenúncio da desfusão pode ser antevisto nas considerações de Freud (1901/1969) sobre o suicídio como pertencente à categoria de equívocos na ação. Vale notar, então, que o exame do problema do suicídio nos termos acima antecipa a conceituação por Freud de uma pulsão de autodestruição, visto tratar-se aqui de uma reflexão efetuada já em 1901. Essa interrogação acerca da possibilidade da autodestruição é importante para aquilo que se segue na obra de Freud a respeito do suicídio. Em uma conferência intitulada "Contribuições para uma discussão acerca do suicídio" (1910/1969), ele aborda o suicídio como algo obscuro e de causas misteriosas. Diante da pulsão de vida subjugada, Freud questiona se a renúncia à autopreservação teria como base motivos do próprio eu. Charliac (2002) atenta para esse ponto da reflexão de Freud ao observar que há, nessa passagem de 1910, uma exposição do problema do suicídio a partir de duas propostas metapsicológicas não excludentes entre si: "De um lado, a renúncia do eu à vida poderia ser provocada por uma decepção da libido devido a causas externas; de outro lado, a renúncia poderia provir de causas internas, de motivos próprios ao eu" (Freud, 1910/1969, p. 209). O deslocamento da investigação para o campo do eu acarreta, assim, a reformulação da pergunta inicial sobre uma tendência à autodestruição para uma nova pergunta concernente a uma renúncia à autopreservação por parte do eu. Freud afirma não ter subsídios para responder à questão, contudo não deixa de propor um encaminhamento. Segundo ele, é possível "tomar como ponto de partida a condição de melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma comparação entre ela e o afeto do luto" (Freud, 1910/1969, p. 244). Estabelecido o binômio luto e melancolia, que perdurará ao longo da obra de Freud, o suicídio tem a melancolia como referência, na medida em que a interrogação passa a inquirir uma renúncia por parte do eu. A formação binomial luto e melancolia é estabelecida por Freud (1910/1969) como condição para que se avance na temática do suicídio. Deve-se sublinhar que, nesse segundo tempo das considerações sobre o suicídio, fica claro tratar-se de um problema de pesquisa a que Freud se dedica. Além disso, a interrogação sobre o papel do eu na autodestruição estabelece, para o autor, a melancolia, em contraposição ao luto, como o terreno em que tal pesquisa será desenvolvida. Ainda em "Contribuições para uma discussão acerca do suicídio" (1910/1969), Freud afirma não haver resposta possível para a questão sobre como seria possível o eu renunciar à autopreservação. Ele atribui a impossibilidade de resposta à ausência de meios para tanto e, como vimos, indica o estudo da melancolia em sua correlação com o luto como caminho. Destacamos novamente que o suicídio se revela uma questão para Freud e que o terreno da melancolia é o que está a seu alcance, na medida em que a renúncia à autopreservação e o desapego à vida são características articuladoras do suicídio com o quadro melancólico. Será em "Luto e melancolia" (1917 [1915]/1969) que Freud retomará tal articulação, propondo abandonar qualquer reivindicação à universalização daquilo que desenvolverá acerca da melancolia, uma vez que esta assume várias formas de definição mesmo para a psiquiatria descritiva. Dispõe-se a abordar apenas os casos em que a natureza psicogênica é indiscutível. O trajeto que seguimos até aqui faz ver o quanto o trabalho reflexivo realizado nesse escrito já vinha sendo, desde antes, propulsado pelas dificuldades em elucidar o que estaria em jogo na problemática do suicídio. A correlação entre luto e melancolia é justificada por Freud na medida em que o quadro geral dessas duas condições refere uma perda. Entretanto, enquanto no luto há a "reação à perda de um ente querido, como os pais, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 249), na melancolia há "uma disposição patológica" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 249). O que se apresenta na melancolia é uma diminuição, um escoamento da autoestima. Portanto, é algo que se afigura no eu e que é exclusivo da melancolia, não presente no luto. O desânimo, o desinteresse pelo mundo, a incapacidade de amar, a inibição e a diminuição da autoestima chegam ao ponto de encontrarem expressão na "autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 250). Esse conjunto, que pode até mesmo revelar uma expectativa delirante de punição e que expressa um caráter de escoamento do eu, sustenta-se sobre uma perda. Assim, Freud (1917 [1915]/1969, p. 251) aponta o processo melancólico a partir da perda de um "objeto amado", ou melhor, "uma perda de natureza mais ideal" da qual não se tem notícias, pois não se conhece o que foi perdido. Essa perda está retirada da consciência. Segundo Freud, não se conhece o que foi perdido e que está "absorvendo tão completamente" (1917 [1915]/1969, p. 251) o eu, tornando-o vazio e empobrecido (Ichverarmung), ou autoempobrecido, como revela o termo em alemão, caído na miséria. Freud assinala que é o próprio paciente quem envilece, torna vil e abjeto o eu. É o paciente quem "estende sua autocrítica até o passado, declarando que nunca foi melhor" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 252), constituindo um delírio de insignificância moral, recusando-se a comer e a dormir em um processo no qual é suprimido aquilo que "compele todo ser vivo a se apegar à vida" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 252). Freud se debruça sobre esse retorno ao eu, dizendo ser improdutivo contradizer o paciente em sua certeza sobre tal acusação. Afirma que, de alguma forma, há nisto razão. É nesse processo em que o paciente encontra-se desinteressado e "incapaz de amor" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 252) que se verificam as acusações que se justificam, segundo Freud, por uma visão mais penetrante da realidade e pela proximidade a uma verdade, o que leva ao adoecimento. O enfoque não está em saber se a autodifamação do eu é correta ou não, o fato está em que isto tem sua razão. Ao considerar essa razão, Freud pôde observar que a perda do amor-próprio do eu denota a perda relativa ao eu. A diminuição do amor-próprio, da autoestima, é a mais marcante das características da melancolia. É a partir dela que Freud observa que as injúrias que o paciente dirige a si podem se ajustar a outrem, "a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 254). Portanto, as injúrias dirigidas a um objeto de amor são deslocadas contra o eu. Esse deslocamento contra o eu se baseia na ambivalência da relação amorosa com o objeto. É nisso que se fundamentam os lamentos e queixas (Klagen) que não passam de acusações (Anklagen). Freud faz um jogo com as palavras Klagen e Anklagen permitindo uma compreensão de um eu perseguidor, ativo em sua ação de dar queixas de si próprio. Identifica-se aqui o prenúncio do conceito de supereu e de sua função no processo melancólico, o que será determinante para a elucidação da problemática do suicídio. Em contrapartida, é preciso considerar ter sido esta última - ao ensejar a pergunta sobre o papel do eu na autodestruição e a articulação com a melancolia - que fez vislumbrar a possibilidade de uma partição no eu, a qual condicionou o progresso da metapsicologia freudiana. Segundo o autor, na melancolia, em uma relação objetal particular, há um enlaçamento que é destruído. Ele afirma não ser o resultado disto um processo normal de desligamento do objeto no qual há um deslocamento para outro objeto; há sim um recolhimento da libido ao eu. Nesse recolhimento da libido, estabelece-se uma identificação do eu com o objeto que se foi: "assim a sombra do objeto caiu sobre o ego" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 254). Desde então, pode o eu ser julgado como o objeto perdido por uma instância crítica. É assim que a perda do objeto se transforma em uma perda do eu, levando Freud a reconhecer haver aí uma forte fixação no objeto e, concomitantemente, uma fraca aderência do investimento depositado. Diante disso, aponta a base narcísica sobre a qual é feita a escolha objetal. Perante certo obstáculo, o investimento de carga depositado no objeto regrediria ao narcisismo, não renunciando à relação amorosa. O amor depositado no objeto seria substituído pela identificação narcísica. O investimento objetal tem, após sua ruptura, um duplo destino: uma parte volta-se por via identificatória e outra sob a forma de sadismo. Freud reconhece a importância desse sadismo no processo melancólico, sendo ele justamente o que permite pensar o suicídio na melancolia: "é exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante - e tão perigosa" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 257). Segundo o autor, a tendência ao suicídio parecia inexplicável na medida em que, anteriormente, se considerava o estado primitivo da vida pulsional ser um grande amor do eu por si mesmo e o medo surgido diante de uma ameaça à vida ser correspondente a uma quantidade de libido narcísica liberada. Diante desses dois pontos, seria impossível compreender que o eu, tão preso e amoroso de si, atentasse contra si próprio. Sobre esse processo de autotortura promovido pelo eu, Lambotte (2000, p. 72) afirma que "o melancólico se esmera em matar o que o estorva na ignorância em que ele se encontra da natureza de seu adversário". Esse sadismo que se dirige ao eu subjugado ao objeto é, então, um elemento essencial às considerações de Freud sobre o suicídio. É ao conceber o retorno do sadismo ao eu que Freud pôde sustentar a identificação ao objeto contra o qual atenta o eu em sua ignorância que o torna vítima e algoz concomitantemente: A análise da melancolia mostra agora que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder tratar a si mesmo como objeto - se for capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto, e que representa a reação original do ego para com objetos do mundo externo (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 257). Quando a catexia se desliga do objeto e retorna ao eu, há, na melancolia, uma identificação ao objeto e, desde então, com a volta da catexia objetal, o eu trata-se como se fosse o objeto perdido. Nesse processo de se tratar como objeto, o eu dirige para si a hostilidade que é original da relação com aquele. É assim que "ele [o objeto], não obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 257). O objeto triunfa sobre o eu e isso se dá pela via do amor e do ódio que sustentavam a relação. Sobre o triunfo do objeto como via para o suicídio, Quinet (2006, p. 207) destaca um deslocamento, visto que "não é mais pelo narcisismo, e sim pela própria teoria pulsional e a identificação do sujeito ao objeto que ele [Freud] passa a explicar o suicídio na melancolia". O modo como Freud dispõe sobre a questão do suicídio passa a incluir a dimensão do objeto; ou seja, o eu apenas atenta contra si na medida em que ataca um objeto em si. Desse modo, a pesquisa acerca do problema do suicídio, que já se desdobrara, em Freud, da interrogação sobre o que possibilita a autodestruição ao aprofundamento do que a condiciona desde a instância do eu, valendo-se do paradigma da melancolia, avança agora para a problemática do objeto. Freud, além disso, propõe ainda um exame tópico da melancolia para considerar em quais sistemas psíquicos seu processo se desenrola. O autor inicia tal reflexão sobre a tópica afirmando que a representação mental inconsciente (da coisa) "do objeto foi abandonada pela libido" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 261). Como já observado, a ambivalência seria base para o que se processa na melancolia. Segundo Freud, em relação ao objeto há uma luta entre amor e ódio, e "a localização dessas lutas só pode ser atribuída ao sistema Ics., a região dos traços de memória de coisas (em contraste com a catexia da palavra)" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 261). Topograficamente, portanto, o processo da melancolia, que compreende a ambivalência em sua fundamentação, ocorre em um lugar diferente do das palavras e, deste lugar, o caminho para a consciência é barrado para o melancólico. No embate entre amor e ódio, o ódio avança e desliga o objeto, enquanto que, "refugiando-se no ego, o amor escapa à extinção" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 262). É assim que, após o abandono do objeto e a consequente identificação narcísica, o conflito passa a ser representado para a consciência como uma tensão entre o eu e o agente crítico, o qual, como observamos, será designado, em 1923, por supereu. Este figurará no bojo de uma concepção do eu como formado a partir de identificações que tomam o lugar de investimentos abandonadas pelo isso: "a primeira dessas identificações sempre se comporta como uma instância especial no ego e dele se mantém à parte sob a forma de um superego" (Freud, 1923/1969, p. 61). A manifestação do supereu acarreta o sentimento de culpa tanto na melancolia quanto na neurose obsessiva. Contudo, o melancólico admite a culpa e se submete ao castigo, não havendo objeção por parte do eu. É nessa postura, tipicamente melancólica, que se sustentam as lamentações. O sadismo que se dirige ao eu é conteúdo do supereu, criando assim uma "cultura pura do instinto de morte e, de fato, ela com bastante frequência obtém êxito em impulsionar o ego à morte, se aquele não afasta o seu tirano a tempo, através da mudança para a mania" (Freud, 1923/1969, p. 66). A implicação do supereu na análise do suicídio é fundamental, visto ser desde essa instância concebível que o eu assuma a culpa e se castigue, identificado ao objeto. O percurso da pesquisa freudiana sobre o suicídio, iniciado com o vislumbre de uma tendência à autodestruição que o caracterizaria dentre outros atos, avançou, tomando a melancolia como via de resposta. Esta indica o sadismo e a identificação narcísica como elementos de um processo no qual a sombra de um objeto se sobrepõe ao eu. Subjugado ao triunfo do objeto sobre si, o eu se castiga como outrem e, apenas dessa forma, é possível matar-se, matando o objeto com o qual se identificou. O processo de automortificação do eu melancólico é situado por Freud como relativo à perda que ocorreu no eu. Não desprovido de razão pelo autor, o eu melancólico mostra que as injúrias são dirigidas a um objeto que, por certo motivo, o habita. É então que a sombra que recobre o eu se fundamenta na identificação narcísica em que o retorno sobre o eu tem o caminho marcado. É importante destacar que este processo se estabelece, segundo afirma Freud (1915 [1917]/1969), fora do âmbito das palavras. Assim, a prevalência do que está fora do âmbito das palavras sobre o eu melancólico acresce-se a uma elaboração freudiana que tem na identificação narcísica o eixo essencial para a consideração do suicídio na melancolia. A trajetória do tema do suicídio na obra de Freud situa a identificação narcísica ao objeto como ponto chave desde o qual, na melancolia, todo o processo de autodestruição se desenrolaria. Contudo, em acréscimo à articulação de um objeto que triunfa sobre o eu, cabe reinterrogar a dimensão de ato do suicídio, que vimos ser considerada por Freud em 1901. Essa dimensão de ato implicada no suicídio não chega a ser explorada no exame da problemática melancólica, restando como uma indicação pontuada por Freud ainda no primeiro tempo de sua investigação. Ao indicar a delimitação freudiana do suicídio à melancolia, na medida em que este ponto de vista marca uma identificação radical ao objeto, Charliac (2002, p. 210) afirma que "esta ideia foi tomada por Lacan em seu Seminário - A angústia desde onde ele avança ao propor que a passagem ao ato suicida, em particular na melancolia, encontra seu correlato em um deixar-se cair do sujeito". Assim, a identificação absoluta ao objeto encontrará, a partir de Lacan (1962-1963/2005), uma aproximação com o deixar-se cair evidenciado pelo ato suicida. É com o intuito de avançar neste ponto, que recorremos, na sequência, aos apontamentos de Lacan (1962-1963/2005) acerca do deixar-se cair e da passagem ao ato suicida na melancolia. Para tal, faz-se necessário um breve percurso sobre os elementos destacados pelo autor em seu seminário de 1962-1963. *Universidade de São Paulo/Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário