30/01/2023

Maternagem e o conceito de mãe suficientemente boa na teoria winnicottiana - Germano Barbosa

O termo “mãe suficientemente boa” foi criado pelo psiquiatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, conhecido por sua teoria sobre maternagem. Ele acreditava que o desenvolvimento saudável de uma criança depende da qualidade da relação entre a mãe e o bebê.
De acordo com Winnicott, a mãe suficientemente boa é aquela que consegue atender às necessidades básicas do bebê, de maneira adequada, como na alimentação, no conforto e na segurança. Além disso, ela também permite que o bebê experimente frustrações e separações temporárias, o que é fundamental para o desenvolvimento de uma identidade autônoma.
Winnicott também destacou a importância do espaço intermediário entre a mãe e o bebê, para que a criança possa experimentar a sensação de ser independente, mas ainda se sentir amparada pela mãe. O espaço intermediário se refere ao lugar físico e psicológico, no qual a criança e seus objetos de amor, como os pais, se relacionam. Nesse lugar intermediário, ocorre o processo de desenvolvimento da identidade. Este espaço permite que a criança experimente e brinque com a realidade, além de sentir segurança e confiança na relação com os objetos de amor. É um ambiente protetor, que favorece a criatividade e a formação de uma identidade sólida, e é fundamental para que a criança desenvolva sua imaginação e sua criatividade.
Para Winnicott, a mãe não precisa ser perfeita, para ser suficientemente boa. Ela deve, sim, ser capaz de lidar com suas próprias frustrações e dificuldades, de maneira saudável, a fim de poder proporcionar ambiente seguro e estável para o bebê.
Em resumo, a teoria de Winnicott sobre maternagem e mãe suficientemente boa destaca a importância da relação entre a mãe e o bebê, para o desenvolvimento saudável da criança. A mãe suficientemente boa é aquela que consegue atender às necessidades básicas do bebê, permitir frustrações temporárias e criar um espaço intermediário seguro. Sim, essa é uma boa definição de uma “mãe suficientemente boa". Além disso, a mãe suficientemente boa também deve proporcionar amor e afeto, estabelecer limites claros, ser consistente em seu comportamento e fornecer orientação e apoio ao crescimento e desenvolvimento do bebê.
Portanto, a ideia da mãe suficientemente boa é justamente equilibrar frustração e satisfação dos desejos da criança, de maneira saudável, estabelecendo limites e ensinando a criança a lidar com a frustração, mas, também, ser sensível aos seus desejos e necessidades. Ao fazer isso, a mãe contribui para o desenvolvimento da resiliência e da autoconfiança da criança, ajudando-a a tornar-se uma pessoa saudável, capaz de lidar com as adversidades da vida.

Desertificação tem jeito - Germano Barbosa

A desertificação é um processo de degradação do solo, que leva à perda da sua fertilidade, causado por fatores como mudanças climáticas, erosão do solo, exploração excessiva dos recursos naturais e má gestão das terras. No Nordeste brasileiro, esse processo é agravado pelas condições climáticas adversas, como secas prolongadas e chuvas irregulares, bem como pela intensa exploração dos recursos naturais e pela falta de práticas de conservação do solo.
A região Nordeste do Brasil é uma das mais afetadas pela desertificação, com mais de 60% de seu território já degradado. Esse processo leva à perda da capacidade de produção agrícola, redução da biodiversidade e aumento da vulnerabilidade das populações locais aos impactos das mudanças climáticas.
A principal causa da desertificação no Nordeste é a exploração excessiva dos solos para agricultura, pecuária e mineração. A falta de práticas de conservação do solo, como o uso de técnicas agrícolas sustentáveis e a proteção das áreas de preservação permanente, agrava ainda mais o problema.
Outra causa importante é a mudança climática, que tem intensificado as secas na região e prejudicado a agricultura. A falta de infraestrutura adequada, como sistemas de irrigação, também contribui para a desertificação, já que dificulta a adaptação às condições climáticas adversas.
Para combater a desertificação no Nordeste, é necessário implementar medidas de conservação do solo, como a promoção de práticas agrícolas sustentáveis, a proteção das áreas de preservação permanente e a implementação de sistemas de irrigação. Além disso, é fundamental investir em tecnologias que possibilitem a adaptação às mudanças climáticas, como o uso de sementes resistentes à seca e o desenvolvimento de sistemas de captação de água de chuva.
A educação ambiental também é importante, pois ajuda a conscientizar a população sobre a importância da preservação do solo e a adotar práticas sustentáveis.
Em resumo, a desertificação no Nordeste brasileiro é um problema sério que afeta a produção agrícola, a biodiversidade e a segurança alimentar da região.
Para lidar com esse problema, é importante implementar soluções eficazes e duradouras, como:
• Reflorestamento: Plantar árvores ajuda a restaurar a cobertura vegetal e a proteger o solo contra a erosão. Além disso, as árvores podem fornecer madeira e outros recursos valiosos para as comunidades locais;
• Adoção de práticas agrícolas sustentáveis: As práticas agrícolas intensivas, como o monocultivo, podem degradar o solo e contribuir para a desertificação. Alterar para práticas agrícolas mais sustentáveis, como agricultura de conservação, pode ajudar a preservar o solo e a água;
• Gerenciamento de recursos hídricos: A gestão adequada dos recursos hídricos é vital para combater a desertificação. Isso inclui a construção de barragens, canais de irrigação e sistemas de captação de água da chuva;
• Educação e conscientização: A educação e conscientização das comunidades locais sobre a importância da preservação dos recursos naturais é fundamental para combater a desertificação a longo prazo;
• Parcerias público-privadas: As parcerias entre o setor público e o privado podem ajudar a alocar recursos e tecnologias para combater a desertificação no Nordeste brasileiro. Implementar essas soluções requer ação e colaboração, em níveis local, nacional e internacional. É importante agir agora, para preservar o meio ambiente e garantir um futuro sustentável para as comunidades da região Nordeste do Brasil.


18/01/2023

Melancolia e suicídio: uma articulação freudiana - Marcos Vinicius Brunhari/Vinicius Anciães Darriba*

Dentre as primeiras referências de Freud ao suicídio, em "Sobre a psicopatologia da vida cotidiana" (1901/1969), ele reserva um capítulo para descrever os "equívocos na ação [Vergreifen]" (Freud, 1901/1969, p. 167). Segundo o autor, basta um passo, a partir dos lapsos na fala, para que se considerem os equívocos da ação como formados da mesma maneira que os lapsos. Essa formação compartilhada se observa desde o efeito falho, um desvio do que era intencionado, como característica fundamental. Dentro dessa categoria de equívocos na ação, Freud enumera situações em que atos apontam para determinações inconscientes escamoteadas sob equívocos e erros. São pequenos acidentes ou o uso inadequado de objetos e, também, quedas, escorregões, passos em falso e ferimentos autoinfligidos. Quanto aos ferimentos autoinfligidos, Freud afirma que "nunca se pode excluir o suicídio como um possível desfecho do conflito psíquico" (1901/1969, p. 181). A proposta de Freud é de dispor as tentativas ou conclusões de suicídio como reveladoras de uma intenção inconsciente que pode estar mascarada por um acidente casual. Dessa forma, ele argumenta que uma tendência à autodestruição está presente em certa medida e que "os ferimentos autoinfligidos são, em geral, um compromisso entre essa pulsão e as forças que ainda se opõem a ela" (Freud, 1901/1969, p. 183). Freud indica a presença de uma pulsão que impele à autodestruição, o que pode ser reconhecido como um germe da pulsão de morte, na base das tentativas ou conclusões suicidas de ordem consciente ou inconsciente. Segundo o autor, duas forças se opõem e os ferimentos autoinfligidos surgem a partir da tendência à autodestruição que supera as forças que se lhe opõem. Esse prenúncio da desfusão pode ser antevisto nas considerações de Freud (1901/1969) sobre o suicídio como pertencente à categoria de equívocos na ação. Vale notar, então, que o exame do problema do suicídio nos termos acima antecipa a conceituação por Freud de uma pulsão de autodestruição, visto tratar-se aqui de uma reflexão efetuada já em 1901. Essa interrogação acerca da possibilidade da autodestruição é importante para aquilo que se segue na obra de Freud a respeito do suicídio. Em uma conferência intitulada "Contribuições para uma discussão acerca do suicídio" (1910/1969), ele aborda o suicídio como algo obscuro e de causas misteriosas. Diante da pulsão de vida subjugada, Freud questiona se a renúncia à autopreservação teria como base motivos do próprio eu. Charliac (2002) atenta para esse ponto da reflexão de Freud ao observar que há, nessa passagem de 1910, uma exposição do problema do suicídio a partir de duas propostas metapsicológicas não excludentes entre si: "De um lado, a renúncia do eu à vida poderia ser provocada por uma decepção da libido devido a causas externas; de outro lado, a renúncia poderia provir de causas internas, de motivos próprios ao eu" (Freud, 1910/1969, p. 209). O deslocamento da investigação para o campo do eu acarreta, assim, a reformulação da pergunta inicial sobre uma tendência à autodestruição para uma nova pergunta concernente a uma renúncia à autopreservação por parte do eu. Freud afirma não ter subsídios para responder à questão, contudo não deixa de propor um encaminhamento. Segundo ele, é possível "tomar como ponto de partida a condição de melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma comparação entre ela e o afeto do luto" (Freud, 1910/1969, p. 244). Estabelecido o binômio luto e melancolia, que perdurará ao longo da obra de Freud, o suicídio tem a melancolia como referência, na medida em que a interrogação passa a inquirir uma renúncia por parte do eu. A formação binomial luto e melancolia é estabelecida por Freud (1910/1969) como condição para que se avance na temática do suicídio. Deve-se sublinhar que, nesse segundo tempo das considerações sobre o suicídio, fica claro tratar-se de um problema de pesquisa a que Freud se dedica. Além disso, a interrogação sobre o papel do eu na autodestruição estabelece, para o autor, a melancolia, em contraposição ao luto, como o terreno em que tal pesquisa será desenvolvida. Ainda em "Contribuições para uma discussão acerca do suicídio" (1910/1969), Freud afirma não haver resposta possível para a questão sobre como seria possível o eu renunciar à autopreservação. Ele atribui a impossibilidade de resposta à ausência de meios para tanto e, como vimos, indica o estudo da melancolia em sua correlação com o luto como caminho. Destacamos novamente que o suicídio se revela uma questão para Freud e que o terreno da melancolia é o que está a seu alcance, na medida em que a renúncia à autopreservação e o desapego à vida são características articuladoras do suicídio com o quadro melancólico. Será em "Luto e melancolia" (1917 [1915]/1969) que Freud retomará tal articulação, propondo abandonar qualquer reivindicação à universalização daquilo que desenvolverá acerca da melancolia, uma vez que esta assume várias formas de definição mesmo para a psiquiatria descritiva. Dispõe-se a abordar apenas os casos em que a natureza psicogênica é indiscutível. O trajeto que seguimos até aqui faz ver o quanto o trabalho reflexivo realizado nesse escrito já vinha sendo, desde antes, propulsado pelas dificuldades em elucidar o que estaria em jogo na problemática do suicídio. A correlação entre luto e melancolia é justificada por Freud na medida em que o quadro geral dessas duas condições refere uma perda. Entretanto, enquanto no luto há a "reação à perda de um ente querido, como os pais, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 249), na melancolia há "uma disposição patológica" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 249). O que se apresenta na melancolia é uma diminuição, um escoamento da autoestima. Portanto, é algo que se afigura no eu e que é exclusivo da melancolia, não presente no luto. O desânimo, o desinteresse pelo mundo, a incapacidade de amar, a inibição e a diminuição da autoestima chegam ao ponto de encontrarem expressão na "autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 250). Esse conjunto, que pode até mesmo revelar uma expectativa delirante de punição e que expressa um caráter de escoamento do eu, sustenta-se sobre uma perda. Assim, Freud (1917 [1915]/1969, p. 251) aponta o processo melancólico a partir da perda de um "objeto amado", ou melhor, "uma perda de natureza mais ideal" da qual não se tem notícias, pois não se conhece o que foi perdido. Essa perda está retirada da consciência. Segundo Freud, não se conhece o que foi perdido e que está "absorvendo tão completamente" (1917 [1915]/1969, p. 251) o eu, tornando-o vazio e empobrecido (Ichverarmung), ou autoempobrecido, como revela o termo em alemão, caído na miséria. Freud assinala que é o próprio paciente quem envilece, torna vil e abjeto o eu. É o paciente quem "estende sua autocrítica até o passado, declarando que nunca foi melhor" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 252), constituindo um delírio de insignificância moral, recusando-se a comer e a dormir em um processo no qual é suprimido aquilo que "compele todo ser vivo a se apegar à vida" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 252). Freud se debruça sobre esse retorno ao eu, dizendo ser improdutivo contradizer o paciente em sua certeza sobre tal acusação. Afirma que, de alguma forma, há nisto razão. É nesse processo em que o paciente encontra-se desinteressado e "incapaz de amor" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 252) que se verificam as acusações que se justificam, segundo Freud, por uma visão mais penetrante da realidade e pela proximidade a uma verdade, o que leva ao adoecimento. O enfoque não está em saber se a autodifamação do eu é correta ou não, o fato está em que isto tem sua razão. Ao considerar essa razão, Freud pôde observar que a perda do amor-próprio do eu denota a perda relativa ao eu. A diminuição do amor-próprio, da autoestima, é a mais marcante das características da melancolia. É a partir dela que Freud observa que as injúrias que o paciente dirige a si podem se ajustar a outrem, "a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 254). Portanto, as injúrias dirigidas a um objeto de amor são deslocadas contra o eu. Esse deslocamento contra o eu se baseia na ambivalência da relação amorosa com o objeto. É nisso que se fundamentam os lamentos e queixas (Klagen) que não passam de acusações (Anklagen). Freud faz um jogo com as palavras Klagen e Anklagen permitindo uma compreensão de um eu perseguidor, ativo em sua ação de dar queixas de si próprio. Identifica-se aqui o prenúncio do conceito de supereu e de sua função no processo melancólico, o que será determinante para a elucidação da problemática do suicídio. Em contrapartida, é preciso considerar ter sido esta última - ao ensejar a pergunta sobre o papel do eu na autodestruição e a articulação com a melancolia - que fez vislumbrar a possibilidade de uma partição no eu, a qual condicionou o progresso da metapsicologia freudiana. Segundo o autor, na melancolia, em uma relação objetal particular, há um enlaçamento que é destruído. Ele afirma não ser o resultado disto um processo normal de desligamento do objeto no qual há um deslocamento para outro objeto; há sim um recolhimento da libido ao eu. Nesse recolhimento da libido, estabelece-se uma identificação do eu com o objeto que se foi: "assim a sombra do objeto caiu sobre o ego" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 254). Desde então, pode o eu ser julgado como o objeto perdido por uma instância crítica. É assim que a perda do objeto se transforma em uma perda do eu, levando Freud a reconhecer haver aí uma forte fixação no objeto e, concomitantemente, uma fraca aderência do investimento depositado. Diante disso, aponta a base narcísica sobre a qual é feita a escolha objetal. Perante certo obstáculo, o investimento de carga depositado no objeto regrediria ao narcisismo, não renunciando à relação amorosa. O amor depositado no objeto seria substituído pela identificação narcísica. O investimento objetal tem, após sua ruptura, um duplo destino: uma parte volta-se por via identificatória e outra sob a forma de sadismo. Freud reconhece a importância desse sadismo no processo melancólico, sendo ele justamente o que permite pensar o suicídio na melancolia: "é exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante - e tão perigosa" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 257). Segundo o autor, a tendência ao suicídio parecia inexplicável na medida em que, anteriormente, se considerava o estado primitivo da vida pulsional ser um grande amor do eu por si mesmo e o medo surgido diante de uma ameaça à vida ser correspondente a uma quantidade de libido narcísica liberada. Diante desses dois pontos, seria impossível compreender que o eu, tão preso e amoroso de si, atentasse contra si próprio. Sobre esse processo de autotortura promovido pelo eu, Lambotte (2000, p. 72) afirma que "o melancólico se esmera em matar o que o estorva na ignorância em que ele se encontra da natureza de seu adversário". Esse sadismo que se dirige ao eu subjugado ao objeto é, então, um elemento essencial às considerações de Freud sobre o suicídio. É ao conceber o retorno do sadismo ao eu que Freud pôde sustentar a identificação ao objeto contra o qual atenta o eu em sua ignorância que o torna vítima e algoz concomitantemente: A análise da melancolia mostra agora que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder tratar a si mesmo como objeto - se for capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto, e que representa a reação original do ego para com objetos do mundo externo (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 257). Quando a catexia se desliga do objeto e retorna ao eu, há, na melancolia, uma identificação ao objeto e, desde então, com a volta da catexia objetal, o eu trata-se como se fosse o objeto perdido. Nesse processo de se tratar como objeto, o eu dirige para si a hostilidade que é original da relação com aquele. É assim que "ele [o objeto], não obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 257). O objeto triunfa sobre o eu e isso se dá pela via do amor e do ódio que sustentavam a relação. Sobre o triunfo do objeto como via para o suicídio, Quinet (2006, p. 207) destaca um deslocamento, visto que "não é mais pelo narcisismo, e sim pela própria teoria pulsional e a identificação do sujeito ao objeto que ele [Freud] passa a explicar o suicídio na melancolia". O modo como Freud dispõe sobre a questão do suicídio passa a incluir a dimensão do objeto; ou seja, o eu apenas atenta contra si na medida em que ataca um objeto em si. Desse modo, a pesquisa acerca do problema do suicídio, que já se desdobrara, em Freud, da interrogação sobre o que possibilita a autodestruição ao aprofundamento do que a condiciona desde a instância do eu, valendo-se do paradigma da melancolia, avança agora para a problemática do objeto. Freud, além disso, propõe ainda um exame tópico da melancolia para considerar em quais sistemas psíquicos seu processo se desenrola. O autor inicia tal reflexão sobre a tópica afirmando que a representação mental inconsciente (da coisa) "do objeto foi abandonada pela libido" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 261). Como já observado, a ambivalência seria base para o que se processa na melancolia. Segundo Freud, em relação ao objeto há uma luta entre amor e ódio, e "a localização dessas lutas só pode ser atribuída ao sistema Ics., a região dos traços de memória de coisas (em contraste com a catexia da palavra)" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 261). Topograficamente, portanto, o processo da melancolia, que compreende a ambivalência em sua fundamentação, ocorre em um lugar diferente do das palavras e, deste lugar, o caminho para a consciência é barrado para o melancólico. No embate entre amor e ódio, o ódio avança e desliga o objeto, enquanto que, "refugiando-se no ego, o amor escapa à extinção" (Freud, 1917 [1915]/1969, p. 262). É assim que, após o abandono do objeto e a consequente identificação narcísica, o conflito passa a ser representado para a consciência como uma tensão entre o eu e o agente crítico, o qual, como observamos, será designado, em 1923, por supereu. Este figurará no bojo de uma concepção do eu como formado a partir de identificações que tomam o lugar de investimentos abandonadas pelo isso: "a primeira dessas identificações sempre se comporta como uma instância especial no ego e dele se mantém à parte sob a forma de um superego" (Freud, 1923/1969, p. 61). A manifestação do supereu acarreta o sentimento de culpa tanto na melancolia quanto na neurose obsessiva. Contudo, o melancólico admite a culpa e se submete ao castigo, não havendo objeção por parte do eu. É nessa postura, tipicamente melancólica, que se sustentam as lamentações. O sadismo que se dirige ao eu é conteúdo do supereu, criando assim uma "cultura pura do instinto de morte e, de fato, ela com bastante frequência obtém êxito em impulsionar o ego à morte, se aquele não afasta o seu tirano a tempo, através da mudança para a mania" (Freud, 1923/1969, p. 66). A implicação do supereu na análise do suicídio é fundamental, visto ser desde essa instância concebível que o eu assuma a culpa e se castigue, identificado ao objeto. O percurso da pesquisa freudiana sobre o suicídio, iniciado com o vislumbre de uma tendência à autodestruição que o caracterizaria dentre outros atos, avançou, tomando a melancolia como via de resposta. Esta indica o sadismo e a identificação narcísica como elementos de um processo no qual a sombra de um objeto se sobrepõe ao eu. Subjugado ao triunfo do objeto sobre si, o eu se castiga como outrem e, apenas dessa forma, é possível matar-se, matando o objeto com o qual se identificou. O processo de automortificação do eu melancólico é situado por Freud como relativo à perda que ocorreu no eu. Não desprovido de razão pelo autor, o eu melancólico mostra que as injúrias são dirigidas a um objeto que, por certo motivo, o habita. É então que a sombra que recobre o eu se fundamenta na identificação narcísica em que o retorno sobre o eu tem o caminho marcado. É importante destacar que este processo se estabelece, segundo afirma Freud (1915 [1917]/1969), fora do âmbito das palavras. Assim, a prevalência do que está fora do âmbito das palavras sobre o eu melancólico acresce-se a uma elaboração freudiana que tem na identificação narcísica o eixo essencial para a consideração do suicídio na melancolia. A trajetória do tema do suicídio na obra de Freud situa a identificação narcísica ao objeto como ponto chave desde o qual, na melancolia, todo o processo de autodestruição se desenrolaria. Contudo, em acréscimo à articulação de um objeto que triunfa sobre o eu, cabe reinterrogar a dimensão de ato do suicídio, que vimos ser considerada por Freud em 1901. Essa dimensão de ato implicada no suicídio não chega a ser explorada no exame da problemática melancólica, restando como uma indicação pontuada por Freud ainda no primeiro tempo de sua investigação. Ao indicar a delimitação freudiana do suicídio à melancolia, na medida em que este ponto de vista marca uma identificação radical ao objeto, Charliac (2002, p. 210) afirma que "esta ideia foi tomada por Lacan em seu Seminário - A angústia desde onde ele avança ao propor que a passagem ao ato suicida, em particular na melancolia, encontra seu correlato em um deixar-se cair do sujeito". Assim, a identificação absoluta ao objeto encontrará, a partir de Lacan (1962-1963/2005), uma aproximação com o deixar-se cair evidenciado pelo ato suicida. É com o intuito de avançar neste ponto, que recorremos, na sequência, aos apontamentos de Lacan (1962-1963/2005) acerca do deixar-se cair e da passagem ao ato suicida na melancolia. Para tal, faz-se necessário um breve percurso sobre os elementos destacados pelo autor em seu seminário de 1962-1963. *Universidade de São Paulo/Universidade do Estado do Rio de Janeiro

16/01/2023

O cemitério de Jorge Amado

Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, ante-salas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo santo. Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos, quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram a minha estima e perderam. Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério – nele não existe jazigo de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau caráter. Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça, já não pode me magoar. Raros enterros – ainda bem! – de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante – a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outros varri da memória, retirei da vida. Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado. Jorge Amado

08/01/2023

Psicopatia - Transtorno da Personalidade Antissocial

Mulheres contam como é viver com o distúrbio

Psicopatia é uma condição que especialistas tratam como mal compreendida.

Por Megha Mohan, da BBC


A psicopatia é geralmente associada aos homens, particularmente aos criminosos, e é muito pouco
estudada nas mulheres — Foto: SOMSARA RIELLY

A psicopatia é uma condição que condena e fascina muitas pessoas, mas o estigma profundamente arraigado em volta dela indica que o distúrbio ainda é mal compreendido — especialmente quando afeta as mulheres.

Victoria sabia que seu namorado tinha uma esposa, mas, depois de alguns anos, ela começou a suspeitar que ele tivesse outras amantes.

Ela não tinha provas, mas a linguagem corporal do namorado o denunciava, segundo ela. Suas histórias não faziam sentido. Seu rosto parecia diferente quando ele mentia.

"Acontece que tenho excelente memória quando se trata de conversas", ela conta. "Ele não sabia mentir bem. Não sei como a esposa dele nunca o desmascarou."

Diversas formas de punição surgiam na mente de Victoria, até que ela se decidiu por uma delas. Levaria algum tempo e ela precisaria agir como se não soubesse de nada. Foi assim que, por vários meses, Victoria continuou a vê-lo, mas enviava fotos do seu namorado nu para a esposa dele.

Perturbado, ele procurou Victoria, se perguntando quem poderia estar enviando essas fotos. Sua esposa estava arrasada. Ele confessou a Victoria que, de fato, estava dormindo com outras mulheres. E não suspeitou que era Victoria quem estava enviando as fotos.

Quando Victoria se cansou de tudo e quis terminar o relacionamento, ela enviou à esposa do namorado uma coleção final de fotografias. Na última imagem, a própria Victoria aparecia junto ao homem. Com essa revelação explosiva, Victoria saiu da vida deles para sempre.

Quando Victoria contava esta história para as pessoas, sua petulância as espantava.

"Elas me perguntavam 'por que você fez isso com a esposa dele? O que a esposa dele fez para merecer isso? O que ela fez para magoar você?'", ela conta. "E eu pensava, 'bem, a vida é injusta'."

Ela faz uma pausa.

"Acho que este é um bom exemplo de uma característica psicopata extrema que eu costumava ter. Indiferença."

Mulheres com psicopatia costumam exibir menor tendência à violência que os homens e mais manipulação interpessoal — Foto: SOMSARA RIELLY

A definição da psicopatia

A psicopatia não é um diagnóstico oficial de saúde mental e não está presente na mais recente edição do Manual Estatístico e de Diagnóstico de Distúrbios Mentais. Ela está agrupada sob a classificação mais ampla de distúrbio da personalidade antissocial, embora a psicopatia seja amplamente usada em ambientes clínicos em todo o mundo.

Ela é entendida como sendo um distúrbio neuropsiquiátrico, em que uma pessoa exibe níveis anormalmente baixos de empatia ou remorso, muitas vezes resultando em comportamento antissocial e, às vezes, criminoso.

O termo foi usado por médicos europeus e americanos no início dos anos 1900 e tornou-se comum em 1941, após a publicação do livro The Mask of Sanity ("A máscara da sanidade", em tradução livre), do psiquiatra norte-americano Hervey M. Cleckley.

"Os principais acadêmicos do mundo vêm debatendo a definição da psicopatia", segundo a psicóloga e neurocientista Abigail Marsh, da Universidade de Georgetown em Washington D.C., nos Estados Unidos. "Você terá explicações muito diferentes da psicopatia, se falar com um psicólogo forense ou criminologista."

Marsh afirma que os psicólogos criminalistas tendem a classificar as pessoas como psicopatas somente se exibirem comportamento extremo e violento. Mas, para ela, a condição se apresenta na forma de espectro com outros comportamentos menos dramáticos, que podem variar de uma pessoa para outra.

Os psicólogos e psiquiatras, de forma geral, concordam que uma ou duas a cada 100 pessoas, na população em geral, atendem ao critério de psicopatia. Mas Marsh afirma que até 30% das pessoas exibem algum grau de características psicopatas na população em geral.

Para as pessoas com psicopatia, isso pode significar que elas têm dificuldades para manter amizades próximas e se colocam em situações de risco, mas a condição também é prejudicial para as pessoas à sua volta.

"Muitas vezes, ter por perto uma pessoa insensível ou manipuladora é devastador e cansativo para as pessoas que vivem com alguém com psicopatia extrema", afirma Marsh.

Ela afirma que a maioria dos estudos referentes às pessoas com psicopatia tem sido conduzida com criminosos. Alguns desses estudos indicam que os psicopatas — ou as pessoas que exibem características psicopatas— representam um número desproporcional de pessoas na prisão, embora existam controvérsias sobre sua real incidência.

De forma geral, as pesquisas indicam que a incidência de psicopatia é maior entre os criminosos homens (representando talvez 15 a 25% dos prisioneiros) do que entre as mulheres (10 a 12%).

Mas este ainda é um campo pouco estudado na população em geral e ainda menos pesquisas são realizadas com mulheres.

As mulheres com psicopatia

Embora diversos estudos indiquem que a incidência da psicopatia é maior entre os homens do que entre as mulheres, Marsh argumenta que isso pode se dever, em primeiro lugar, à forma em que os exames foram idealizados.

"As escalas iniciais de psicopatia foram principalmente desenvolvidas e testadas na população prisional de homens na Columbia Britânica [no Canadá] por Bob Hare", afirma ela.

O psicólogo canadense Robert Hare desenvolveu a Lista de Controle da Psicopatia (agora chamada PCL-R) nos anos 1970 e uma versão revisada é frequentemente considerada o padrão-ouro global para o teste de características psicopatas. Ela é agora a ferramenta de diagnóstico validada e mais frequentemente empregada para determinar a psicopatia.

A PCL-R mede a escala de desconexão emocional que alguém pode ter, tal como sua disposição de manipular alguém até um resultado desejado, independentemente das consequências, bem como seu comportamento antissocial, como escolhas agressivas ou impulsivas que podem ser violentas ou envolver o abandono abrupto das responsabilidades.

"Adaptações dessa escala são utilizadas hoje em dia em amostras não institucionalizadas, incluindo mulheres e crianças em diversos países, mas permanece aberta a questão de se você usaria essas mesmas questões para começar se fosse lidar com mulheres não criminosas", afirma Marsh.

Uma análise dos pesquisadores em 2005 também comparou características centrais de mulheres e homens com psicopatia. Eles indicaram que as mulheres, muitas vezes, exibiam características como impulsividade debilitadora (como falta de planejamento), falsidade nos relacionamentos interpessoais e agressões verbais.

Por outro lado, os pesquisadores concordaram que a psicopatia nos homens tende a se manifestar com violência e agressões físicas. Mas, na época, elas indicaram que não haviam sido realizadas pesquisas suficientes sobre o motivo para isso. E, 17 anos depois, não houve grandes mudanças.

A estudante de PhD de psicologia da Universidade de Madri, na Espanha, Ana Sanz García e seus colegas realizaram uma análise mais recente, em 2021, de estudos de pesquisa publicados, que avaliaram mais de 11 mil adultos para determinar psicopatia. Ela concorda que são necessários mais estudos concentrados nas mulheres e em pessoas não criminosas com psicopatia.

Sanz García afirmou à BBC que os estudos até hoje demonstram que as mulheres com psicopatia exibem menos propensão à violência e ao crime do que os homens, mas existem mais exemplos de manipulação interpessoal.

"Seria interessante estudar os fatores que explicam por que, entre as mulheres com alto grau de psicopatia, existe menor probabilidade de cometer atos criminosos e antissociais do que entre os homens", afirma ela. "Se esses fatores forem descobertos, será possível criar um programa para evitar que homens e mulheres com alto grau de psicopatia cometam esses atos antissociais e criminosos."

Acredita-se que a genética e o ambiente de criação de uma pessoa
influenciem a 
psicopatia. — Foto: SOMSARA RIELLY

Também neste caso, não há pesquisas suficientes para determinar os motivos, mas um estudo recente na França indica uma possível resposta: a frieza e a falta de emoção parecem desempenhar um papel mais central na psicopatia feminina do que entre os homens. E as mulheres também exibem menos comportamentos violentos e antagonistas que na psicopatia masculina.

Manipulação como entretenimento

Victoria afirma que o seu comportamento manipulador começou a surgir como forma de entretenimento próprio.

Ela nasceu na Malásia, em uma família de classe média. O alcoolismo do seu pai e a falta de responsabilidade pessoal pelas consequências da bebida tornaram seu lar infeliz.

Ela teve sucesso nos estudos, mas se sentia frequentemente aborrecida. Para se divertir, ela gostava de passar adiante informações confidenciais que recebia das pessoas, segredos que ela havia jurado guardar. Quem odiava quem. Quem gostava de quem.

As tensões entre os alunos no ensino médio, muitas vezes, eram causadas por ela. Victoria sabia manipular os outros para que assumissem a responsabilidade pelos erros que ela cometeu e sabia o que dizer para se livrar de problemas. Ela chegou a convencer uma professora de que tinha atirado um giz nela apenas por pressão dos colegas.

"Era o que ela queria ouvir", ela conta. "Ela queria acreditar que aquela menina inteligente não era ruim, apenas facilmente influenciável."

Mais recentemente, Victoria estava obtendo ajuda para controlar seus impulsos. Mas ela também encontrou apoio, embora possa parecer estranho, de pessoas como ela.

Pergunto a ela sobre diversos vídeos recentes conhecidos como "o desafio do psicopata", que viralizaram no TikTok, somando mais de 20 milhões de visualizações. Eles discutem como os espectadores podem "identificar um psicopata".

A hashtag "psicopata" é uma das mais populares naquela rede social, com mais de dois bilhões de visualizações. Ela é usada para marcar diversos assuntos, incluindo imagens de pessoas com psicopatia em julgamentos, e também é usada como insulto para maus comportamentos.

O que fica claro é que pessoas acham o tema da psicopatia e seus portadores, ao mesmo tempo, fascinantes e repulsivos.

Victoria não acha esses vídeos ofensivos.

"Parte de ser psicopata é não se importar com o que as pessoas pensam, de forma que isso não me aborrece", afirma ela. "Mas mostra a pouca compreensão das pessoas sobre o espectro completo da condição."

A exceção, para ela, são os vídeos que discutem se as pessoas com psicopatia são mais propensas a maltratar os animais. "Muitos de nós preferimos animais aos seres humanos", afirma ela, secamente.

Sociopata ou psicopata?

O que Victoria indica como "nós" é uma comunidade online de mulheres como ela. Ela está concentrada principalmente no blog da escritora M. E. Thomas, talvez uma das mais conhecidas mulheres com psicopatia. A avaliação de psicopatia de Thomas, realizada pelo psicólogo forense John Edens, da Universidade A&M do Texas, nos Estados Unidos, foi de 99%.

O blog de Thomas, intitulado Sociopath World, detalha como é a vida com psicopatia. Ela afirma que usava a palavra sociopata em vez de psicopata porque achava que era um termo que seria compreendido por mais pessoas.

Sociopatia não é um termo clínico amplamente aceito, e psicólogos como Abigail Marsh afirmam que, às vezes, ele é usado por indivíduos que podem sentir o estigma relacionado à palavra "psicopata".

Um agente literário descobriu o blog de Thomas e ofereceu um contrato para um livro. Confessions of a Sociopath: A Life Spent Hiding in Plain Sight ("Confissões de uma sociopata: uma vida passada escondendo-se à vista de todos", em tradução livre) foi publicado em 2012 e traduzido para mais de 10 idiomas. Um filme baseado no livro, estrelado pela atriz norte-americana Lisa Edelstein, está atualmente em produção.

"Vejo-me como uma fórmula, não como uma pessoa", afirma Thomas. "É como ser uma planilha do Excel, onde examino o que faço e digo calculando o possível resultado."

Um exemplo pode ser dizer a alguém que ela o ama quando quer algo dele, afirma Thomas. Ela conta que já fez isso algumas vezes e gerou o rompimento de vários relacionamentos.

Um estudo de 2012 da Universidade de Zurique, na Suíça, também descobriu que a risada é frequentemente usada pelas pessoas psicopatas como instrumento intencionalmente manipulador. Ela as ajuda, por exemplo, a controlar a conversa. Ou, às vezes, a rir da pessoa com quem estão falando - e não com ela.

Thomas afirma que seu agente a instrui a não usar a palavra "manipuladora" quando falar sobre si mesma, mas sim dizer que sabia como influenciar as pessoas desde a infância. Mas "manipuladora" é a palavra que ela usa. Ela afirma que essa qualidade a ajudou a tornar-se uma boa advogada, que ainda é a sua profissão.

Quando ela fala, as pessoas não conseguem identificar seu sotaque. Elas acham que Thomas pode ser de Israel ou da Europa oriental, embora ela tenha vivido toda a sua vida na Califórnia.

"Você tem sotaque quando se socializa para ter identidade. Eu nunca tive identidade", ela conta. "Tenho um sentido muito fraco de mim mesma."

Possíveis benefícios?

No seu blog, M.E. Thomas compartilha seus pensamentos diários e entrevista outras pessoas que vivem com características psicopatas. Ela conta que muitos dos seus leitores encontram refúgio nas suas postagens e vídeos, pois é um lugar onde elas reconhecem seus próprios padrões e compartilham experiências sem que sejam julgadas por isso.

Observar a psicopatia como um espectro pode significar que as características que a
definem são muito mais comuns entre a população em geral do que o indicado pela
maioria dos estudos — Foto: SOMSARA RIELLY

Uma de suas leitoras é Alice, uma mulher alemã de 27 anos de idade. Ela afirma que é frustrante ler artigos ou assistir a ilustrações de pessoas com psicopatia como indivíduos maldosos que precisam ser evitados. "Nós existimos em uma escala, como todos os demais", afirma ela.

Como Thomas, Alice é agradável à primeira vista, talvez porque ela sorri muito. Ela admite desde o início que está imitando o que ela sabe ser socialmente adequado.

Alice vem fazendo isso por toda a vida. Quando sua avó morreu, ela observou o luto da sua irmã e copiou seu comportamento.

Ela afirma que também finge ser sarcástica, pois isso permite que ela diga impunemente o que tem na mente, sem causar alarme.

Alice aprendeu isso já aos 12 anos de idade, quando estava de férias em um navio e se perguntou em voz alta como seria observar as pessoas afundarem em caso de acidente. A reação dos seus pais e amigos a ensinou que era importante enquadrar esse tipo de pensamento como humor ácido e não como um pensamento obscuro.

Embora Thomas descreva sua característica psicopata dominante como manipulação e Victoria afirme que sua marca é a indiferença, Alice aponta sua falta de empatia como sua característica mais evidente.

"Não tenho nenhuma empatia emocional, mas tenho muita empatia cognitiva", afirma ela, com sorriso inabalável. "Se alguém se machucar, por exemplo, ferir o joelho ou quebrar um braço, posso não sentir nada por eles emocionalmente, mas sei que preciso conseguir ajuda e assim o faço."

E isso, segundo ela, faz com que ela seja uma boa pessoa para ter por perto em situações de emergência.

"As pessoas me contam seus problemas e não fico ofuscada pelas emoções, de forma que aquilo não me afeta e posso ouvi-las e oferecer conselhos racionais", ela conta. "Outras pessoas podem querer se distanciar porque aquilo aciona suas próprias emoções, mas isso não acontece comigo."

Alice não é a única que acredita que suas características podem ser benéficas para a sociedade. Os traços "positivos" da psicopatia são explorados pelo psicólogo Kevin Dutton, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, no seu livro A Sabedoria dos Psicopatas: O que Santos, Espiões e Serial Killers Podem nos Ensinar sobre o Sucesso (Ed. Record, 2018).

Em 2011, Dutton conduziu uma pesquisa no Reino Unido intitulada "A Grande Pesquisa sobre os Psicopatas Britânicos". As profissões onde as pessoas mais exibiam características psicopatas foram os altos executivos, jornalistas, policiais, militares, cirurgiões e advogados.

Dutton argumenta que certas características de personalidade do espectro psicopata - incluindo a frieza sob pressão e reações menos empáticas às interações interpessoais - podem ajudar as pessoas a realizar seu trabalho sem que sejam, como diria Alice, "ofuscadas".

É preciso apoio e desmistificação

"Todos conhecemos alguém com características psicopatas", afirma Marsh, que é uma das fundadoras da organização Psycopathy Is. Ela oferece uma das poucas plataformas online que fornecem apoio para psicopatas e pessoas próximas.

Marsh afirma que seu objetivo é desmistificar a psicopatia e fornecer ferramentas de seleção para que as próprias pessoas possam se avaliar, com instrumentos confiáveis, e conseguir boas informações sobre o que fazer em seguida.

"A psicopatia não é uma categoria, é um espectro", afirma ela. "Ela é distribuída entre a população em graus variáveis. Algumas pessoas causam destruição contínua e outras precisam apenas administrar os seus sintomas."

"Quando não discutimos isso abertamente, as pessoas se lembram de Ted Bundy e Hannibal Lecter [assassinos em série - o primeiro, real, e o segundo, da ficção]", afirma ele. "E então vemos tendências do TikTok preenchendo a lacuna de informações de especialistas."

Muitos especialistas, incluindo Marsh, acreditam que está na hora de desfazer os mitos e o estigma que envolvem a psicopatia.

As causas subjacentes da psicopatia ainda são mal compreendidas, embora cada vez mais pesquisas de imagens neurológicas venham ajudando a indicar algumas das possíveis anormalidades do cérebro que podem explicar os sintomas.

Pesquisas indicam, por exemplo, que homens com psicopatia possuem reação reduzida em regiões do cérebro relacionadas ao processamento do medo e que existem indicações de que efeitos similares podem ser encontrados nas mulheres.

Alguns pesquisadores também indicaram diferenças no circuito neural das amígdalas cerebelosas, uma estrutura importante do cérebro responsável pelo processamento das emoções. Mas, como a maior parte das pesquisas sobre psicopatia, essas conclusões estão longe de ser consistentes e ainda precisam ser mais estudadas.

A genética e o ambiente das pessoas também são peças importantes do quebra-cabeça. Mas Marsh acredita que conseguir essas respostas exigirá que a sociedade como um todo desenvolva uma relação mais madura com a psicopatia.

"Eu realmente admiro o que a comunidade de pesquisa sobre o autismo fez nos anos 1990", afirma ela. "Eles decidiram se libertar do estigma, dizendo às pessoas a verdade sobre a condição. Que é um distúrbio de espectro."

"Nós, como pesquisadores de psicopatia, precisamos definir uma abordagem para realmente nos atirarmos ao desenvolvimento de melhores intervenções que possam ajudar as pessoas com psicopatia a viver vidas produtivas e prósperas", defende Marsh.

Mas ela acrescenta que, até que isso aconteça, estamos fracassando com as pessoas com psicopatia.

"Isso significa que as pessoas - pessoas com o distúrbio, seus amigos e sua família - não estão conseguindo o apoio de que precisam", afirma ela. "E isso prejudica a todos."

Victoria, Alice e M. E. Thomas usam a meditação, terapia psicológica e apoio de colegas da sua comunidade online para ajudar a controlar o seu distúrbio.

"Não estar nas sombras ajuda", afirma Thomas. "Mas ainda existe um estigma para a palavra 'psicopata'. Ainda há muito trabalho a fazer e é preciso ter muitas conversas mais abertas. A realidade é que nós existimos."

Características da psicopatia

Segundo o site PsychopathyIs.org (que teve como uma de suas criadoras a psicóloga e neurocientista Abigail Marsh, da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos), estas são algumas das principais características que se manifestam em casos extremos de psicopatia:

  • Abordagem egoísta e indiferente aos relacionamentos interpessoais.
  • Falta de empatia sobre o sofrimento ou angústias dos demais.
  • Falta de demonstração de remorso depois de machucar os outros ou desobedecer regras.
  • Pouco sentido de identidade consigo próprio.
  • Manipulação das pessoas para conseguir as coisas.
  • Dedicação a atividades perigosas ou arriscadas.
  • Charme superficial.

Megha Mohan é jornalista especializada em gênero e identidade, da BBC.

Essa reportagem foi originalmente publicada em http://news.bbc.co.uk/1/hi/63732969.stm