20/01/2010

Por uma nova consciência - Antônio Normando

               Por volta de 1990, os festejos carnavalescos, em Campina Grande, estavam em baixa. Quem gostava de carnaval aproveitava o feriadão para viajar a João Pessoa ou outra capital do Nordeste. Foi então que alguém teve a ideia de criar um evento alternativo que proporcionaria o encontro – não o confronto – de várias ideologias em busca de alternativas que conduzissem o fragmentado mundo moderno a uma convivência pacífica. Budistas, hinduístas, cristãos, muçulmanos, ateus, agnósticos, prostitutas, etc, expunham suas visões de mundo, em um clima de respeito e confraternização.
              Em pouco tempo o evento tornou-se um sucesso: hotéis lotados, ruas cheias de turistas, que se encantavam com aquele convívio pacífico entre pessoas de pensamentos tão diferentes...
Foi assim, em ritmo crescente, por quase dez anos, quando os evangélicos − que se negavam a participar do evento, preferindo refugiar-se nos retiros espirituais – decidiram criar um evento somente deles. Alegavam que os participantes do Encontro para uma nova consciência, promoviam, de fato, uma consciência satânica, que não tinha nada de novo, já que era uma extensão do discurso da serpente no Jardim do Éden. Chegaram até a culpar as pessoas envolvidas com o evento por quaisquer males que sobreviessem à cidade, inclusive o crescente desemprego, que não acontecia somente em Campina Grande, mas em todo o país.
Nascia o Encontro para a consciência cristã, em clara oposição ao evento anterior. Estabelecia-se o confronto, no lugar da convivência e do respeito; o enfrentamento, ao invés da cooperação. A velha consciência da divisão se estabeleceu, inclusive entre os evangélicos, já que, até hoje, algumas denominações se negam a participar ou são excluídas por não apresentarem as credenciais “genuínas” do verdadeiro evangélico. Assim começava o evento que divulgava a consciência do Cristo.
              Daí em diante, totalmente dependente de recursos públicos, o Encontro para uma nova consciência começou a fenecer. Pressionados pelos evangélicos, e preocupados com os votos, os políticos foram reduzindo as verbas, matando à míngua o evento que tantos turistas trouxera à cidade, divulgando-a pelo Brasil a fora. A desorganização, a falta de divulgação e de informação, afastou a maioria dos turistas, restando alguns abnegados que ainda tentam manter o evento, apesar de todas as adversidades.
              Com os cofres abastecidos, inclusive por dinheiro público, o Encontro para a consciência cristã vai realizar a sua 12ª. edição, a X2, como chamam, com uma organização impecável. Para eles, foram as suas orações que conduziram ao fracasso o Encontro para uma nova consciência. Era a consciência do Cristo vencendo a consciência satânica.
Sinto-me voltando à Idade Média. Apaguem as luzes, é hora de dormir.

10/01/2010

Fazer trinta anos - Affonso Romano de Sant'Anna

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Quatro pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.
Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.
Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca.
Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.
Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.
Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.
Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.
Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.
Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.
Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.
Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.
Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. 
Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar. 

02/01/2010

JESUS DESEJAVA FUNDAR UMA NOVA IGREJA? - Antônio de Pádua Tô Mais Diaquino


              Em seu livro PROCURAIS O JESUS HISTÓRICO?, o judeu Rochus Zuurmund, professor de teologia bíblica, afirma que há um abismo entre os resultados da pesquisa científica em torno da Bíblia e o que sabe dela o cidadão comum.
              Aqueles que acreditam ter Jesus fundado uma nova religião citam a famosa frase do evangelho de Mateus em que Pedro é apontado como a pedra sobre a qual seria edificada a Igreja, mas é importante lembrar que Mateus é o único evangelista a registrar essa passagem. Em Marcos (evangelho mais antigo), Lucas e João, não encontramos nenhuma referência a essa fala de Jesus.
              Outros religiosos afirmam que o Cristo era um fiel seguidor do Judaísmo e que nunca pensara em criar uma nova religião. Como comprovação do que dizem, citam Mateus 5:17: “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento”. Afirmam, também, que se Jesus realmente disse a Pedro o que Mateus escreveu, não o estava incumbindo de edificar um novo credo, já que, para o Cristo, o problema não era o que os fariseus diziam, mas os seus excessos interpretativos e conduta.
              A frase colocada na boca de Jesus por Mateus teria sido dita em aramaico, língua utilizada no dia-a-dia de Jesus e dos seus contemporâneos. O hebraico só era usado em atividades religiosas. O problema é que as versões mais antigas do Evangelho de Mateus estão em grego. Eklésia, a palavra grega usada nesta passagem, significava comunidade, e não Igreja, no sentido em que hoje concebemos.
              Tudo indica, portanto, que Jesus jamais teve a intenção de fundar uma nova religião, mas sim em fazer um grupo de pessoas (comunidade) compreenderem o que ele chamava de REINO DE DEUS. O que seria esse REINO? Bem, essa é uma outra história. Fica para a nossa próxima conversa.

01/01/2010

Carlos Drummond de Andrade

PASSAGEM DO ANO
O último dia do ano  não é o último dia do tempo.  Outros dias virão  e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.  Beijarás bocas, rasgarás papéis,  farás viagens e tantas celebrações. De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,  os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.
O último dia do tempo  não é o último dia de tudo.  Fica sempre uma franja de vida  onde se sentam dois homens.  Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco.  E quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.  Mereceste viver mais um ano.  Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.  Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo.  Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar. O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles...  E nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.  O corpo gasto renova-se em espuma.  Todos os sentidos alerta funcionam.  A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida. A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.